segunda-feira, 5 de julho de 2010

Crítica do Filme: Kiss-Ass - Quebrando Tudo














O nosso herói se olha no espelho depois de levar uma surra e parece perplexo com as feridas. Exerce seu ofício com dedicação e é assim que a criminalidade retribui? Ele só esperava um pouco de reconhecimento e, quem sabe, ficar com a donzela no final. No caso de Daniel Craig, o protagonista de Nem Tudo é o que Parece, seria uma bela recompensa: Sienna Miller de cinta-liga.

O filme de estreia do britânico Matthew Vaughn como diretor, depois de produzir os primeiros sucessos de Guy Ritchie, já tinha esse elemento que em Kick-Ass - Quebrando Tudo é central: a jornada do herói enquanto penitência. O traficante de drogas vivido por Craig em Nem Tudo é o que Parece se assemelha ao nerd sem noção que decide virar super-herói em Kick-Ass. Ambos acham que conhecem o sistema e suas regras, mas seus olhares sempre foram de espectadores desse sistema.

Daí a perspectiva frontal do espelho. Se a ideia é dar ao personagem uma consciência que permita entender o que significa ser herói, antes de mais nada é preciso olhar para si mesmo. Quando Dave Lizewski (Aaron Johnson) veste pela primeira vez o macacão verde-amarelo de Kick-Ass, ainda é um espectador. Encanta-se com sua coreografia de golpes. Já na cena, bem adiante, em que se olha no espelho (cena idêntica à de Craig no outro filme) para medir o olho roxo e o sangue na boca, deixou de ser um espectador para virar de fato o protagonista de sua própria história.

Espelhos são uma constante em Kick-Ass, mas Matthew Vaughn estende essa maneira frontal de encarar as coisas a diversas outas situações. A mediação entre espectadores e espetáculo é questão importante do filme. A defesa do latino espancado é mediada pelo YouTube, o ataque de Big Daddy ao galpão é visto pela câmera de vigilância, e a cena do castigo é transmitida mundialmente ao vivo. Repare como a câmera pega frequentemente de frente, em close-up, todos os coadjuvantes. É como se eles estivessem assistindo ao mesmo filme que nós. O ápice desse jogo de perspectivas não poderia ser outro: o contra-ataque filmado em primeira-pessoa.

Mas para Dave, um protagonista, esse processo de fruição é diferente. Vaughn foi e tem sido criticado pela violência do filme, mas ela é trabalhada de modo bastante sofisticado pelo diretor. Quando envolve os vilões, o espetáculo midiático, é uma violência caricatural: micro-ondas gigante, espada japonesa, bazuca. Quando envolve Dave Lizewski e sua jornada de conscientização, é importante que haja uma mudança de chave: a violência passa a ser mais verossímil, nível canivete na barriga, e o sangue digital dá lugar ao sangue de corante.

(Mesmo quando produzia os filmes de Guy Ritchie, Vaughn já parecia acreditar no caráter transformador da violência. Não é um maneirismo; sem ela Kick-Ass não existiria.)

Essa variação de texturas de sangue é o tipo de coisa que seria difícil desenhar na HQ que deu origem ao filme. Vaughn e a roteirista Jane Goldman, ademais, arredondam a maioria das arestas da minissérie de Mark Millar. Em ambas as mídias, Kick-Ass é imperfeito. O terceiro ato continua uma bagunça, passou por melhoras (a entrada de Red Mist não tem mais o falso mistério da HQ) mas piorou em outros trechos (a cena do incêndio antes colaborava na construção do herói, agora tem relevância zero).

A mudança mais significativa do filme em relação à HQ, que envolve as ambições amorosas de Dave, é crucial. É um momento tipicamente peterparkiano, essa ideia da renúncia pessoal em nome do heroísmo - e Millar, a essa altura, já olha para esses clichês com cinismo. O Kick-Ass de Vaughn pode ser metido a cool, mas de cínico não tem nada. Se a HQ nasceu mais como uma desconstrução da jornada do super-herói, o filme devolve ao arquétipo o que lhe é de direito - mas sem ingenuidades.



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