sábado, 4 de junho de 2011

Crítica: X-Men - Primeira Classe

A chamada "Era de Ouro dos Quadrinhos" começou em 1938, com o lançamento de Action Comics 1, revista em que estreou o Superman, o primeiro dos heróis superpoderosos. Nessa época as histórias em quadrinhos eram mais sisudas, combinando com o ânimo sombrio de seu tempo, quando Superman e Capitão América tinham como grandes inimigos as forças do Eixo. Na década seguinte, com o otimismo dos tempos do pós-guerra, acompanhando as tendências e a empolgação tecnológica, as HQs de heróis tornaram-se mais fantasiosas e coloridas. Sai Adolf Hitler, entra Lex Luthor.

Nas décadas seguintes, a DC Comics manteve esse distanciamento da realidade, oferecendo aventuras cósmicas e heróis superpoderosos como poucos. No início da década de 1960, porém, veio a "Nova Onda" dos quadrinhos, o inevitável rompimento com o estabelecido, comum a todas formas de arte. Surgiam as criações de Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko, o triunvirato sagrado da Marvel Comics. Nesse novo universo, os heróis - ainda que continuassem coloridos e divertidos - viviam em cidades que existiam no mundo real e tinham problemas mais próximos dos nossos. Do atormentado Coisa ao fracassado Peter Parker, os heróis da casa sofriam na pele (rochosa ou não) agruras cotidianas enquanto enfrentavam hostes de malfeitores.

Foi nesse momento histórico que surgiram os X-Men, heróis temidos e odiados pela mesma humanidade que juraram defender. A raça mutante de que fazem parte viveu desde o início uma cisão de ideias, representada pelos antagonistas Charles Xavier, o telepata mais poderoso do mundo, e Magneto, o mestre do magnetismo (inspirados livremente nos debates ideológicos da época de Martin Luther King e Malcolm X pelos direitos dos negros). Enquanto Xavier acreditava na convivência pacífica entre humanos e mutantes, o terrorista tinha a certeza da supremacia de sua raça, considerada o próximo degrau na evolução da espécie, e desejava escravizar o homo sapiens. O primeiro encontro deles durou apenas exatos dois quadrinhos da terceira edição das revista, mas deixou um legado que cruzou os 50 anos seguintes.

A questão central dos mutantes tornou-se a aceitação. A da sociedade e também a dos mutantes por si próprios. É esse também o tema central de X-Men - Primeira Classe (X-Men - First Class, 2011), filme que reinicia a franquia dos personagens no cinema tendo como pano de fundo justamente a década de 1960.
O debate, claro, já existia nos primeiros filmes da série, o que faz sentido se considerarmos que o principal responsável pela adaptação desse universo ao cinema, Bryan Singer, está de volta a bordo. Mas nunca tão focado quanto agora.

Ao lado de Singer estão Ashley Miller, Zack Stentz, Jane Goldman e o diretor e corroteirista Matthew Vaughn (Kick-Ass). Tantos nomes assinando um só roteiro geralmente é sinônimo de um texto que não sabe para onde ir. Não é o caso aqui. O novo X-Men não apenas é um filme divertidíssimo de verão, cheio de ação, humor e aventura, mas também um drama sério nos momentos certos. Especialmente em relação aos personagens, cujo desenvolvimento vai diretamente ao encontro do debate central dos mutantes.

A utilização da personagem Mística (Jennifer Lawrence, em atuação que cresce com o decorrer do filme) é determinante nesse sentido. Transmorfa, a garota tem uma aparência real hedionda - escamosa, com olhos amarelos. Dada a natureza de seu poder - transformar-se em outra pessoa -, porém, ela consegue esconder-se o tempo todo. Mas como alcançar seu potencial se você vive sua vida concentrando-se em ser alguém que não é? A questão - de rara profundidade em um filmão de grande orçamento - também atinge outros personagens, quase todos excepcionalmente bem trabalhados e desenvolvidos.

É inspiradora a maneira como o filme não trata o assunto como mera desculpa para demonstrações de poder e embates entre os mutantes bonzinhos e os malvados. Prepare-se, assim, para adorar o personagem que nos quadrinhos é o maior terrorista do Universo Marvel: Erik Lehnsher, o Magneto. Michael Fassbender, que já havia mostrado a que veio em Bastardos Inglórios e Hunger, aqui tem sua chance de tornar-se um astro de primeiro escalão - e a agarra sem receios. No início uma espécie de James Bond magnético, ele precisa lidar com outro tipo de aceitação, a de seu passado. Erik não é mau, é apenas focado em seu ódio, algo com o qual podemos nos relacionar desde a cena de abertura. Como não odiar o nazista que matou sua família e desejar caçá-lo ao redor do planeta? Graças à qualidade do trabalho de Fassbender, uma obsessão doentia nunca pareceu tão bacana.

Magneto não estaria completo sem seu nêmesis (razão pela qual o alardeado filme-solo do mutante talvez não funcionasse) - e James McAvoy tem um desempenho igualmente brilhante como Charles Xavier, o Professor X. O roteiro e a atuação do escocês simplesmente transformam um dos personagens mais patriarcais e sérios dos quadrinhos em alguém muito diferente. É como se você pudesse conhecer seu pai antes de ele casar com sua mãe. Além das qualidades professorais, Charles é engraçado, charmoso, bon vivant e cheio de entusiasmo e otimismo. É também repleto de falhas, todas essenciais para o funcionamento do tema. As raízes do "bem" e do "mal" em X-Men - Primeira Classe, portanto, são emaranhadas em um solo fértil de situações inteligentes. É muito mais interessante o debate quando ambos os lados argumentam com razão e, ainda que antagônicos, pareçam igualmente corretos aos olhos do observador.

Todos os momentos em que McAvoy e Fassbender dividem a tela já valeriam a produção, mas entra em cena o terceiro vértice do triângulo, o de Sebastian Shaw de Kevin Bacon - e o filme só melhora. O vilão, cercado de excentricidades dignas dos personagens que davam trabalho a James Bond antes dos tempos de Daniel Craig, traz o elemento indispensável a qualquer filme de quadrinhos que se preze. O líder do misterioso Clube do Inferno tem os mutantes mais glamurosos, um submarino tunado e, claro, um plano maligno mirabolante - devidamente explicadinho e com direito ao "power point" de época. Depois de tantos debates e questões filosóficas, um bandido sacana e playboy pra surrar durante um clímax explosivo nunca é demais.

Com o foco em Xavier, Magneto e Mística, é surpreendente que ainda sobre tempo para explorar outros personagens secundários, mas o roteiro dá o que fazer a quase todos. Emma Frost (January Jones) tem espaço de sobra como a ajudante exótica de Shaw (que também conta com os meramente alegóricos Azazel e Maré Selvagem, cujas presenças se justificam exclusivamente pela ação e o visual). Mas quem conhece a personagem de Jones dos quadrinhos não deve gostar do resultado. A Rainha Branca sempre foi manipuladora, inteligente e extremamente sedutora nas HQs. Aqui, a atriz se restringe a repetir sua cara de blasé de Mad Men, um dos únicos pontos fracos da cultuada série.

Já a dinâmica da "primeira classe" - formada por Destrutor (Lucas Till), Fera (Nicholas Hoult), Banshee (Caleb Landry Jones), Darwin (Edi Gathegi) e Angel (Zoe Kravitz) - dá o tom do humor que o filme precisa para se estabelecer também como entretenimento descontraído e ao mesmo tempo buscar o público mais novo. Algo que fica claro na cena em que eles se reúnem pela primeira vez e, como jovens que são, começam a se mostrar. Os poderes que eles demonstram ali - e em uma das cenas seguintes, com o ataque do Clube do Inferno - são fundamentais para o competentíssimo clímax. Nele, Vaughn consegue lidar com vários focos de ação ao mesmo tempo: um combate aéreo, outro de intensa fisicalidade, a tensão da Crise dos Mísseis de Cuba e o confronto principal, que culmina em uma ótima cena, a da moeda acompanhada pela câmera, cujo movimento reflete também a irreversível cisão de valores dos personagens principais.

Nas ideias, na diversão e no design, X-Men - Primeira Classe resgata conceitos do passado dos quadrinhos ao cinema de super-heróis. É como se, pela primeira vez, todas as "Eras" da Nona Arte e suas adaptações conseguissem dialogar no cinema. Há os uniformes bregas e coloridos, a pancadaria pirotécnica, o vilão maluco e os poderes estilosos... mas há também a sobriedade de temas, a qualidade dos personagens e o drama. Em X-Men - Primeira Classe a aceitação não se restringe aos mutantes, mas também aos próprios "comic books" sabendo trabalhar seu lado mais "comic"... dentro e fora da tela.


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